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Descriminalização
do aborto no STF: entenda a discussão e o que pode mudar
Ação aguarda o retorno de um pedido de vistas do novo presidente
do STF, Luís Roberto Barroso, para voltar a julgamento
Ao apagar das luzes da sua passagem pelo Supremo Tribunal
Federal (STF), a ministra Rosa Weber trouxe para a pauta um dos casos mais
polêmicos que está sob o jugo da Corte: a descriminalização do aborto até 12
semanas. Uma ADPF, ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental,
foi colocada no Plenário, teve o voto favorável da magistrada e agora aguarda o
retorno de um pedido de vistas do novo presidente do STF, Luís Roberto Barroso,
para voltar a julgamento.
A expectativa é de que o ministro acompanhe Weber. Em 2019,
durante uma conferência em Harvard, ele disse que o aborto é um direito da
mulher à liberdade sexual e reprodutiva. "Para ser contrário ao aborto não
é preciso defender a sua criminalização", argumentou Barroso na época.
O processo é de 2017 e foi proposto pelo PSOL. O pedido
principal da ação é que o Supremo declare que dois artigos do Código Penal -
124 e 126, que tratam do "auto aborto", ou seja, de quando a mulher
decide interromper a própria gestação - não são compatíveis com a Constituição
e, por isso, sejam retirados da lei. Está de fora da ação o artigo 125, que
trata do aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da mulher.
O nome técnico do procedimento é não-recepção. Quando uma nova
Constituição é feita, as leis precisam passar por um filtro, para constatar se
estão de acordo. No caso do Brasil, várias normativas ficaram para trás depois
de 1988 - como, por exemplo, a lei de imprensa - e outras foram aceitas, na
íntegra ou em partes.
O objetivo da ADPF nº 442 é que os dois artigos que tornam o
aborto crime fiquem para trás, porque o Código Penal é de 1940 e a Constituição
vigente é de 1988. É como uma análise de constitucionalidade, mas retroativa.
A petição inicial da ADPF diz que os artigos 124 e 126 do Código
Penal são incompatíveis com "a dignidade da pessoa humana, (...) a
inviolabilidade da vida, a liberdade, a integridade física e psicológica, a
igualdade de gênero, a proibição de tortura ou ao tratamento desumano ou
degradante, à saúde e ao planejamento familiar".
Isso é diferente de legalizar o aborto. "A
descriminalização retira as sanções penais de um ato, enquanto a legalização
cria um marco regulatório para a realização de forma segura e acessível",
explica Yasmim Curzi, professora da FGV Direito Rio e doutoranda em Sociologia
pela UERJ. Ou seja, se o Supremo julgar a ADPF procedente, isso não significa
que o aborto vai estar disponível no SUS, por exemplo.
A Pesquisa Nacional do Aborto mais recente, de 2021, feita por
pesquisadores da UnB, chegou à conclusão de que uma em casa sete mulheres até
40 anos já realizou um aborto e os números mais altos estão "entre as
entrevistadas com menor escolaridade, negras e indígenas e residentes em regiões
mais pobres". Não há dados sobre aborto no Anuário Brasileiro de Segurança
Pública.
Dados de 2020 da Organização Mundial da Saúde apontam que cerca
45% dos abortos feitos no mundo são inseguros e, dentre eles, 97% são feitos em
países em desenvolvimento.
O que é
uma ADPF?
A sigla significa ação de arguição de descumprimento de preceito
fundamental. É um dos processos do controle de constitucionalidade - igual a
ADI, ação de declaração de inconstitucionalidade, por exemplo - que serve para
avaliar se uma lei anterior à Constituição está ou não de acordo com ela.
O que
significa a não-recepção?
A ADPF 422 pede que os artigos 124 e 126 do Código Penal
vigente, que é de 1940, sejam considerados incompatíveis com a Constituição de
1988. Se o STF julgar a ação procedente, vai acontecer o mesmo procedimento do
caso da lei de imprensa, que foi editada na época da ditadura militar, em 1967.
Em 2009, a Corte entendeu que essa legislação não foi
"recebida", porque era mais compatível com a ordem constitucional
vigente. "A consequência da 'não -recepção' é a mesma de uma legislação
inconstitucional: ela vai ser considerada inválida", explica Maíra
Zapater, professora de Direito da Unifesp e doutora em Direitos Humanos pela
USP.
Se a
ação for julgada procedente, aborto deixará de ser crime?
Sim, mas apenas quando for feito com o consentimento da gestante
e até a 12ª semana da gestação.
Como
ficariam processos e investigações em andamento?
Caso o Supremo acolha os argumentos do pedido,
"investigações e processos em andamento têm que ser encerrados. Ações
penais terão que ser interrompidas e as pessoas que estejam cumprindo pena por
condenações baseadas nesses artigos (124 e 126 do Código Penal) têm que ser
colocadas em liberdade", explica Zapater.
Um julgamento procedente do Supremo pode valer até para quem já
foi condenado porque no direito penal existe um princípio de que a lei mais
benéfica ao acusado pode retroagir. Como o STF é a Corte mais alta do Poder
Judiciário, o arquivamento dos casos deveria ser feito de ofício (independente
de pedido), mas, como explica a professora, "caso isso não seja feito, são
as defesas das pessoas que vão ter que peticionar isso nos processos".
Por que
o limite de 12 semanas?
Até as 12 semanas de gestação, o feto não tem condições de viver
fora do útero e o aborto é considerado seguro para a vida da mulher. Zapater
afirma que existem precedentes judiciais com base nesses argumentos.
Na petição inicial da ADPF, o PSOL argumenta que o limite das 12
semanas é usado em países como Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Cidade do
México (México), Dinamarca, Eslováquia, Espanha, Estônia, Finlândia, França,
Grécia, Guiana Francesa, Hungria, Itália, Letônia, Lituânia, Moçambique,
República Tcheca, Rússia, Suíça e Uruguai.
O relatório "Tendências na mortalidade materna de 2000 a
2020?, feito por várias agências ligadas à ONU (OMS, Unicef, Fundo de População
das Nações Unidas, Banco Mundial e Departamento de Assuntos Econômicos e
Sociais das Nações Unidas) coloca complicações por aborto inseguro como uma das
principais causas de mortalidade materna - ao lado de pressão alta,
sangramentos e infecções.
Se o STF
julgar a ação procedente, significa que mulheres poderão fazer abortos na rede
pública de saúde?
Não. Para que o aborto até a 12ª semana de gestação seja
ofertado no SUS, ele precisa ser regulamentado e legalizado - ou seja, teriam
ser criadas leis, normas, portarias e regulamentos detalhando como, onde e por
quem o aborto pode ser feito. A ADPF não pede isso.
Yasmin Cruzi aponta, no entanto, que a descriminalização pode
influenciar uma regulamentação no futuro. "Isso ocorreu após a
descriminalização do aborto por anencefalia fetal (ADPF 54), regulamentado em
seguida por portarias do Ministério da Saúde, por exemplo", diz a
professora. Nesse caso, o STF permitiu que gestantes de fetos anencéfalos
possam abortar e, depois disso, o procedimento foi regularizado na rede
pública.
E na
rede particular?
Sim.
"A descriminalização se aplica para todo o território nacional, permitindo
que médicos particulares realizem o procedimento sem risco de
penalização", explica Cruzi.