divulgação (Foto: Agência Brasil)
TJ-BA
regulamenta forma de mães entregarem filhos para adoção após o parto
O Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) regulamentou
o procedimento de entrega voluntária da criança para adoção pela gestante. A
entrega voluntária não é crime, ao contrário do abandono, como previsto no
Estatuto da Criança e do Adolescente. A vontade da mulher ou do homem trans
pode ser expressada durante a gestação, em consultas de pré-natal; em
hospitais, no momento do parto; ou em unidades de assistência social ou de
atenção à saúde.
A regulamentação foi feita através do Provimento
Conjunto nº 01/2022, que foi assinado pelos desembargadores José Alfredo
Cerqueira da Silva e Osvaldo de Almeida Bomfim, corregedor Geral de Justiça e
corregedor das Comarcas do Interior, respectivamente, no início deste mês de
janeiro.
Segundo o ato, a gestante que manifestar vontade de
entregar seu futuro filho para adoção deverá ser encaminhada às varas da
Infância e da Juventude para atendimento inicial nos respectivos setores
técnicos. Neste atendimento, haverá entrevista pessoal da genitora para
garantir a livre manifestação de vontade por ela declarada, averiguando o
histórico da gravidez e sua relação com a família extensa. A vara avaliará a
possibilidade do infante permanecer na família natural, antes de encaminhar
para algum abrigamento temporário. O setor técnico ainda deverá sugerir os
devidos encaminhamentos ao Sistema de Garantia de Direitos que entenderem
adequados, notadamente à rede socioassistencial e de atenção à saúde mental
para o atendimento daquela mulher.
Se houver ratificação do desejo de entregar a criança
para adoção, a gestante deverá ser, imediatamente, encaminhada ao juízo da
Infância e da Juventude, para que, na presença de representante do Ministério
Público e de defensor público que a assista caso não tenha advogado constituído
ou de advogado nomeado pelo juízo, manifeste essa intenção, nos termos do art.
166 do Estatuto da Criança e Adolescente. Após o nascimento do bebê, se a
genitora reforçar a vontade de entregá-lo à adoção, a Justiça deverá orientá-la
sobre seus direitos, explicar o procedimento da entrega voluntária, sobretudo,
da possibilidade de não revogação no caso de adoção e verificar se todos os
esforços foram envidados para a manutenção da criança na família natural ou
extensa, especialmente se superada a resistência por parte da genitora de
contato com a família extensa. Também deverá colher informações sobre o
histórico da família e se há necessidade de novo encaminhamento para a rede de
apoio e garantia de direitos, principalmente relativos ao apoio psicológico.
Logo após homologação judicial, haverá consulta no cadastro de pretendentes à
adoção na comarca sobre o interesse na criança, para evitar o acolhimento
institucional.
EXPERIÊNCIA DA DEFENSORIA PÚBLICA
EM CAMAÇARI
Muito antes do provimento do TJ regulamentar a
entrega voluntária, a Defensoria Pública da Bahia (DP-BA) já experimentava algo
parecido em Camaçari. O defensor público Marcus Cavalcanti, em sua atuação na
cidade, percebeu que havia necessidade de se criar um protocolo de atendimento
para mulheres ou homens trans que desejavam não exercer a maternidade,
entregando voluntariamente os filhos para adoção. A iniciativa surgiu diante da
falta de equipe técnica especializada nas varas da infância do estado. “De modo
geral, as varas da infância não têm equipe técnica formada por psicólogas
e assistentes sociais para poder acolher essas gestantes e fazer escuta
qualificada, orientar e acompanhar essas pessoas”, pontua. A iniciativa surgiu
no final de 2019 e poderá ser estendida para todas as unidades da Defensoria
Pública.
O defensor atendeu a primeira
gestante com este protocolo no início de 2020, pouco antes do início da
pandemia. “Através da assistência social e psicológica, acompanhamos a gestação
dessa mulher que manifestou vontade de entregar o filho para adoção. Quando foi
chegando o momento do parto, eu escrevi a petição que seria direcionado para a
Justiça, para a entrega da criança”, conta. Entretanto, devido ao trabalho
desenvolvido ao longo da gestação, a história teve outro final: ao dar à luz, a
mãe desistiu de entregar o filho para adoção. E essa história se repetiu em
mais quatro casos que o defensor atuou desde a instituição do projeto.
Marcus Cavalcanti avalia alguns
fatores que levam a mulher a manifestar o desejo de entregar o filho para
adoção voluntariamente: “Em todos os casos que atendi havia o fator pobreza.
Mas nunca é somente a pobreza. É ela associada a outros fatores, como a
ausência do pai biológico da criança, que não quer reconhecer a paternidade, é
a falta de apoio familiar, conflitos familiares, violência doméstica, por
exemplo”.
Em casos de abandono, muitas
vezes, o desespero daquela mãe está presente por não saber que pode fazer a
entrega voluntária do bebê. Nos casos atendidos pelo defensor, ele pontua que
as mães não estavam desesperadas a ponto de adotar medidas drásticas. “Eu
percebi que elas foram construindo a ideia da entrega voluntária durante a
gestação, com acompanhamento da psicóloga e da assistente social. Entretanto,
na medida em que a gestação foi evoluindo e foi se aproximando da hora do
parto, houve uma mudança de ideia. E acho que pode ser pelas razões biológicas
da mulher, da tensão que o bebê vai nascer, da mudança do batimento cardíaco,
enfim, eu acho que essa sensação acaba definindo a decisão das mães, que, em
todos os casos que acompanhamos, acabaram desistindo de entregar seus filhos
voluntariamente. Em um desses casos, a petição já estava pronta para ser
apresentada à Justiça quando houve a desistência". O defensor pontua que
há outros fatores para além dos hormônios: a sensação de amparo. “Muitas delas
também acabaram encontrando apoio na comunidade, na vizinhança, tiveram acesso
a serviços sociais, apoio do município, acesso a políticas públicas
através de nosso atendimento”, conta.
Muita vezes, quem chega a
manifestar essa vontade não sabe como acessar os serviços públicos, e
tampouco quais são seus direitos. Um dos casos chegou à Defensoria, por
exemplo, através de um atendimento médico, em que a mulher manifestou para o
especialista que não desejaria ficar com o filho. O trabalho da Defensoria
também tem sido o de levar esta informação para os órgãos de saúde, para o
conselho tutelar e para os serviços de assistência social sobre os
direitos que aquela mulher tem caso não queira ser mãe.
A informação sobre o processo de
entrega voluntária pode evitar cenas que por vezes se repetem nas cidades, como
de mães abandonarem os filhos em caixas de sapato e caçambas de lixo. E com a
informação, aos poucos, o defensor acredita que construiremos uma outra
realidade, em que as mulheres não serão julgadas moralmente por um dia não
desejarem exercer a maternidade. “Essa ideia de entrega de um recém-nascido
para adoção por uma mãe é uma construção social nova, que não foi digerida
pela sociedade ainda, ainda mais em países conservadores, como o nosso. Nos
Estados Unidos, por exemplo, já está regulamentada a barriga de
aluguel”.
E se as políticas públicas
chegassem para todos? Será que o cenário seria diferente? Para o defensor, sim.
Se houvesse estrutura no Judiciário, acesso à informação e pleno funcionamento
de uma rede de apoio para as pessoas mais vulneráveis, essas pessoas teriam
mais opções na vida. “Por isso, esse atendimento precisa ser multidisciplinar,
para receber e acolher essas mulheres, com os encaminhamentos devidos”. Também
defende a sensibilização dos profissionais envolvidos no atendimento às
gestantes, para não serem tratadas, por exemplo, pelo viés religioso. “Eles
precisam ter um entendimento de que aquela mulher precisa de um tratamento
digno ao manifestar essa à vontade, e sem dúvida nenhuma, a gente enfrenta essa
questão, de que é se compreender essa autonomia da mulher”, assevera.
ABANDONO É CRIME
Quando há o abandono de uma criança, a genitora pode
ser responsabilizada e punida, mas muitas vezes, no curso do processo, o
desfecho da história pode ter um final feliz. “Quando uma criança é abandonada,
ela vai para uma instituição de acolhimento e se inicia um processo judicial
com a participação da Defensoria e do Ministério Público para se investigar o
caso. Já vimos casos emblemáticos de que a investigação concluiu que o abandono
foi um ato de desespero e entendeu-se que o caso era de entregar a criança
novamente para a mãe. Mas tudo vai depender da investigação, do estado de saúde
mental daquela mulher”, conta. Em alguns casos, infelizmente, não há
identificação da genitora.