divulgação (Foto: Bolsonaro e Putin | Foto: Alan Santos / PR)
Comunidade
ucraniana no Brasil vê viagem de Bolsonaro à Rússia com ceticismo
A viagem do presidente Jair Bolsonaro (PL) a Moscou para se
encontrar com Vladimir Putin, em fevereiro, é vista com ceticismo pela
comunidade ucraniana no Brasil. Nas últimas semanas, as tensões entre a Rússia
e potências ocidentais, que acusam o Kremlin de querer invadir a Ucrânia,
ganharam força, depois de uma série de reuniões mostrarem que o caminho
diplomático, até agora, não trouxe grandes avanços.
Para
Vitorio Sorotiuk, presidente da Representação Central Ucraniano-Brasileira
(RCUB), a visita será bem-vinda caso o líder brasileiro se comporte como
Annalena Baerbock, ministra das Relações Exteriores da Alemanha, que, em
Moscou, disse ao chanceler russo, Serguei Lavrov, que se a Rússia invadir a
Ucrânia haverá consequências. "O que não pode é ele ir para afirmar que
não tem nada a ver com o conflito."
O
Kremlin, que deslocou mais de 100 mil soldados para regiões próximas do país
vizinho, teme que Kiev se junte à Otan, a aliança militar ocidental, o que
aumentaria a influência dos Estados Unidos e de países europeus às portas da
Rússia. Atualmente, a organização já abriga os Estados bálticos (Lituânia,
Estônia e Letônia), ex-repúblicas da União Soviética, algo que Putin também
gostaria que fosse revertido.
A
organização ligada aos ucranianos no Brasil enviou no último dia 17 uma carta
ao ministro das Relações Exteriores, Carlos França, pedindo que o país se
posicione sobre a crise. No documento, a RCUB cita o atual mandato do Brasil no
Conselho de Segurança das Nações Unidas e defende que é função do país
"defender, nos foros internacionais, a Constituição, que prega a
autodeterminação dos povos, a não intervenção, a igualdade entre os Estados, a
defesa da paz e a solução pacífica dos conflitos".
A
carta, porém, de acordo com a representação, não foi respondida pelo governo
brasileiro.
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Lá fora Receba no seu email uma seleção semanal com o que de mais importante
aconteceu no mundo; aberta para não assinantes. *** Uma semana antes, o
secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, responsável pela diplomacia
americana, alertou por telefone o chanceler brasileiro sobre a
"necessidade de uma resposta forte e unida" contra uma eventual
ofensiva russa na Ucrânia. O Itamaraty, no entanto, adotou um discurso moderado
e defendeu a relevância "de encontrar uma solução conforme o direito
internacional".
Felipe
Oresten, presidente da Sociedade Ucraniana do Brasil, também defende uma
postura dura por parte de Bolsonaro. "Espero que o Brasil exija que a
Rússia pare com as ameaças de agressão e respeite a soberania de cada país. Se
a Ucrânia quer entrar na Otan, ela tem esse direito", afirmou ele,
desconsiderando as regras do clube militar, que vetam o ingresso de países com
disputa territoriais.
Estima-se
que haja cerca de 600 mil descendentes de ucranianos no Brasil, segundo a
Representação Central Ucraniano-Brasileira. A maior parte (81%) está localizada
no Paraná, e os demais estão espalhados pelo norte de Santa Catarina, além de
Porto Alegre e São Caetano do Sul, em São Paulo.
Colonizada
a partir do final do século 19, Prudentópolis, a 210 km de Curitiba, abriga
construções com arquitetura semelhante às encontradas na Ucrânia e realiza
eventos que celebram a cultura do país, com, por exemplo, a fabricação de
pêssankas, os ovos de galinha e de ganso pintados à mão.
No
último dia 22, quando comemoraram o Dia da Unificação da Ucrânia, as igrejas
Greco-Católica e Ortodoxa no Brasil organizaram orações pelo país. A campanha
teve adesão da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos), e as preces foram
repetidas em várias igrejas católicas. Quatro dias depois, foi a vez de o papa
Francisco organizar uma oração coletiva pedindo que o conflito não se agrave.
Bolsonaro,
no entanto, não deve atender aos desejos dos descendentes de ucranianos no
Brasil. Na quinta (27), o presidente, que deve ficar em Moscou de 14 a 17 de
fevereiro, chamou Putin de conservador ao responder à pergunta de um apoiador,
curioso para saber se o líder russo era "gente da gente". Na ocasião,
também disse que a visita servirá para "melhores entendimentos" e
"relações comerciais" com a Rússia.
No ano
passado, o Brasil exportou US$ 1,58 bilhão para Rússia e importou US$ 5,7
bilhões, de acordo com dados do Ministério da Economia. Já em 2015, último ano
completo dos governos petistas, o país exportou US$ 2,46 bilhões para os russos
e importou US$ 2,2 bilhões.
Três
dias antes da declaração de Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão (PRTB), para quem
o conflito nada tem a ver com o Brasil -"Somos do continente da
paz"-, disse que a viagem pode ser cancelada caso a situação evolua para
uma guerra. Procurados, o Itamaraty e a Presidência não responderam os
questionamentos enviados pela Folha de S.Paulo sobre possíveis consequências
diplomáticas da visita.
O
presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, o
deputado Aécio Neves (PSDB), afirmou por meio de nota que a viagem de Bolsonaro
já estava marcada quando as tensões entre as potências globais se
intensificaram e que a agenda bilateral do Brasil com a Rússia é bastante
extensa. "Isso apenas já justificaria a manutenção do diálogo e da
visita", disse.
Para
Angelo Serillo, professor de história da USP e autor do livro "Os
Russos", Bolsonaro não repetirá na viagem as ameaças feitas por outros
líderes mundiais a Putin. "O presidente não tem a preocupação de seguir a
cartilha de Joe Biden; se fosse do [Donald] Trump, até teria. Não está na
cabeça dele a ideia de ter que seguir um caminho politicamente correto quanto
aos valores do Ocidente e em relação à Rússia."
Serillo
também defende que o encontro tem pretensões mais políticas do que econômicas.
"Desde que Trump foi derrotado, Bolsonaro está isolado internacionalmente.
Ele vai à Rússia para sair desse isolamento." Depois de passar por Moscou,
o presidente brasileiro deve se reunir em Budapeste com o premiê húngaro,
Viktor Orban, que, assim como ele e Putin, tem histórico de atuar contra a
oposição e a imprensa, além de defender pautas conservadoras, como o combate à
chamada "ideologia de gênero".