divulgação (Foto: Vagner Souza/BNews)
Explosão
de casos de Covid pode ser mascarada por apagão de dados
Desde o ataque, diversos estados deixaram de reportar
novos casos e mortes por Covid
Apesar
de parecer ter dado uma trégua nos indicadores de hospitalizações e óbitos, com
a média móvel de mortes abaixo de 150 por 20 dias consecutivos, médicos e
especialistas afirmam que a pandemia de Covid-19 no Brasil pode estar crescendo
de maneira acelerada.
Isso porque, além da queda no sistema de notificação oficial do
Ministério da Saúde desde o início de dezembro, quando sofreu um ataque cibernético, os dados enviados à pasta pelos
governos estaduais e municipais, que já sofriam um represamento em outros
momentos da pandemia, podem estar consideravelmente subnotificados.
Desde o ataque, diversos estados deixaram de reportar novos
casos e mortes por Covid, muitos deles justificando falta de acesso aos dados
do ministério, extraídos dos portais de notificação, ou dificuldades em inserir
os dados no sistema federal.
Em nota, a Secretaria de Saúde do Estado de Roraima disse que
ainda não tem sido possível atualizar de forma completa os dados em virtude da
dificuldade de acesso aos sistemas do ministério.
A Secretaria de Estado da Saúde do Tocantins informou que desde
o ataque cibernético ficou sem a possibilidade de notificação e acesso à base
de dados dos sistemas Sivep-Gripe, e-SUS Notifica e SI-PNI, de vacinação.
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Questionado sobre os atrasos, o Ministério da Saúde disse, em
nota, que os sistemas Sivep-Gripe, e-SUS Notifica e SI-PNI foram restabelecidos
há mais de dez dias e que há previsão de normalização para janeiro.
Outras unidades da Federação, como o Distrito Federal, dizem que
não foram impactadas pelo apagão, uma vez que a captação de novos casos ocorre
diretamente dos laboratórios da rede pública e privada.
Os principais motivos para a subnotificação reportados por
especialistas são dois: a falta de políticas de testagem em massa, o que causa
uma subnotificação natural dos casos -só são contabilizados aqueles que são
sintomáticos moderados a graves, em geral- e um atraso, ou, muitas vezes,
ausência completa do registro dos casos.
Como mostrado em reportagem da Folha de S.Paulo de início de
dezembro, os registros de casos positivos de infecção pelo Sars-CoV-2 sofrem um
apagão desde setembro, após o Ministério da Saúde mudar, em agosto, as regras
para notificação de exames do tipo antígeno na plataforma e-SUS Notifica.
Com a alteração, foi verificada, a partir de setembro, uma queda
abrupta na taxa de positividade dos testes de antígeno em comparação com os de
RT-PCR. Nos meses anteriores, as taxas de positividade dos dois exames
caminhavam em conjunto -ou seja, se os testes positivos de RT-PCR subiam, os de
antígeno também aumentavam.
Os dois testes buscam o RNA do vírus no organismo por meio do
swab nasal (cotonete). A diferença é que o teste de antígeno utiliza um cartão
similar aos exames de diabetes e o resultado aparece em 15 minutos. O RT-PCR
precisa ser realizado em um laboratório e pode levar de 12 a 72 horas para
apresentar um resultado.
Em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, a positividade dos
testes de antígeno em farmácias -assim como a procura por eles- explodiram nas
duas últimas semanas, reflexo do aumento de casos pós-encontros no Natal e
Réveillon.
Porém, os dados colhidos tanto pelas Secretarias Municipais de
Saúde quanto pelas Secretarias Estaduais não refletem esse aumento.
No painel do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde),
houve uma queda no número de casos informados por semana de 5 a 26 de dezembro
2021, período correspondente ao momento em que o sistema do Ministério da Saúde
ficou fora do ar, gerando atrasos nas notificações das secretarias.
Já na última semana epidemiológica do ano, de 26 de dezembro a
1˚ de janeiro de 2022, houve um aumento de 155% de casos em relação à semana
anterior (de 19 a 25 de dezembro), passando de 22.283 para 56.881. Na última
segunda (3), a média móvel de casos sofreu aumento parecido, de 153% em relação
ao número de duas semanas atrás, de 3.397 para 8.386.
Segundo Julio Croda, pesquisador da Fiocruz, o sistema do
governo federal foi regularizado apenas na semana passada e é esperada uma
explosão de casos nos próximos dias devido ao represamento de dados.
"Sabemos que em dezembro houve um aumento expressivo de
casos por conta da ômicron, mas está tudo represado desde o dia 10 [de
dezembro]. O governo deve regularizar um novo sistema para notificação de dados
de saúde no próximo dia 7, e aí veremos uma subida vertiginosa", afirma
Croda.
Apesar de o ministério buscar soluções para resolver o sistema
para notificação de casos, especialistas relatam que esse é apenas um dos
elementos do apagão de dados de Covid no país. O outro, dizem, é que o Brasil
nunca adotou uma estratégia ampla de testagem.
"Estamos no escuro quanto aos casos, como estivemos desde o
início. Investir em testagem, rastreamento de contatos e isolamento de
suspeitos é o bê-á-bá do enfrentamento de qualquer doença transmissível. A
ômicron está bombando e só saberemos disso em algumas semanas, exatamente pela
insistência em não se testar", diz o epidemiologista Pedro Hallal.
Como não há uma política de testagem, mesmo os casos para os
quais há notificação representam apenas a ponta do iceberg, afirma o médico
sanitarista e ex-diretor da Anvisa Cláudio Maierovitch. "É preciso
diferenciar a subnotificação do 'subdiagnóstico'. Há uma grande quantidade de
pessoas com sintomas leves e que não vão ter acesso aos testes mesmo se
procurassem os serviços de saúde", diz ele.
Para Maierovitch, estudos sorológicos feitos ao longo da
pandemia confirmam esse "subdiagnóstico" dos infectados na pandemia.
Os trabalhos indicaram um número na ordem de 6 a 10 vezes maior do que o
reportado oficialmente.
Para a epidemiologista e presidente do Instituto Sabin, Denise
Garrett, o Brasil sempre esteve muito atrás em termos de testagem em relação a
outros países.
"Sempre voamos um pouco às cegas, mas agora estamos voando
completamente no escuro. E os indicadores que melhor refletem [a propagação]
são a taxa de positividade e de notificação de casos. O que fazemos é usar
indicadores muito tardios, como ocupação de leitos e taxa de
hospitalização", afirma.
Mesmo o número de internados com Covid voltou a crescer nas
últimas semanas em São Paulo, indicando um cenário já avançado da pandemia.
"Esses são dados que aparecem de duas a três semanas depois do aumento de
casos, então há, sim, uma suspeita de um número muito maior do que está sendo
noticiado", completa a epidemiologista.
Maierovitch defende uma estratégia para detecção de casos de
Covid no início. "Nunca teremos em um universo de casos de síndrome gripal
o número exato de Covid, mas a falta de testagem nos faz estar em um apagão
completo", diz.
Para a pesquisadora do Departamento de Ciência Política da USP
Lorena Barberia, nunca houve um estudo adequado para saber os tipos de testes a
serem implementados e para qual público-alvo.
"Em diversos países sabemos de estratégias de testagem
semanais em alunos nas escolas, profissionais de saúde em hospitais,
funcionários e estudantes em universidades. Aqui o governo anuncia a compra de
60 milhões de testes, mas para qual função? Com qual frequência as pessoas
serão testadas? É suficiente? Não sabemos, e não sabemos porque não há
transparência nem do governo federal, nem dos estados e municípios sobre
estratégia e frequência de testagem", diz.